"E não maltrate muito a arruda, se lhe nçao cheira a rosas..."

sexta-feira, 28 de junho de 2013

É médico de quê?

Era por volta das 6 e 40 da manhã, quando o sol frio aparecia mansinho na fila de consulta. Não tinha mais que oito pessoas ali. Cada qual carregando seus papéis e suas dúvidas. Duas senhoras e um senhor juntaram-se a mim. Não entendi, uma vez que meu silêncio causava espanto a eles. Talvez essa tenha sido a atração. 
Um senhor se aproxima e diz que operou o joelho faz um mês e que tinha ficado menor que o outro. Segundo o médico - assim, ele narrou -, era normal. Uma outra senhora diz que veio para o retorno da cirurgia do segundo joelho. E eu, ali calada, respondi quando questionada: "Estou guardando a vaga para o meu pai enquanto ele tira o raio-x". No entanto, uma outra senhora que estava próxima, só observava e segurava uma sacolinha com papéis. Não parecia estar afim de conversa. Ainda assim, o senhor se aproximou:

- A senhora vai pra qual médico? - perguntou ele.
- Eu não sei não. - respondeu meio ríspida a senhora.
- Oxe, comé que a senhora num sabe o nome do médico? - questionou o senhor um tanto inconveniente.
- Oxe e porque eu tenho que saber? Eu marquei a consulta. Quem tem que saber o meu nome é a mulé que me atendeu.
- Mas a senhora num perguntou não? Pegou nenhum papel? - indaga o senhor ainda inconformado.
- Eu não. Eu liguei pra cá. Eu marquei por telefone. Como é que eu ia ter um papel? - responde a senhora já irritada.
- Num é mulé? Pra quê? - pergunta se dirigindo a uma outra mulher ao seu lado.
- É, mulher. Eles tem lá anotado.

O silêncio percorre entre eles por uns 40 segundos. Mas a dúvida teria que ser sanada. 

- Mas é medico de quê, senhora? - pergunta, curiosa.
- É médico de cabeça.
- Ahhh...

E o silêncio se instala.

Por Ana Paula Morais

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(Foto ilustração: Filme Histórias que só existem quando lembradas - 2011)







quinta-feira, 27 de junho de 2013

[ O RISCO


Adoeci entre linhas e lábios adormecidos,
Na poeira dos riscos encontrei meus passos.
Fatigados, lentos e sujos.
Nomeei choros, angústias, incertezas,
Abracei meu corpo, beijei a alma do passado,
e quando menos esperei,
retornei aos rastros do presente.
Fui à luz.
Cantei com os hinos do coração.
Dei-lhe a mão pequenina
e o peito acelerando os sentimentos.
Fiz um bolo de papel e pus no lixo.
Amanhã, quem sabe, servirá de exemplo.

Mas não tardará ouvir sua voz,
o tom é diferente e é assim que será;
aqui, quiça, um aperto de mão.
A felicidade reinará nos quartos,
em cada lamento mastigado,
e em cada cura, uma cicatriz:
nada mais haverá de ser lembrado.

E O EMBORRACHADO].


Por: Ana Paula Morais


segunda-feira, 10 de junho de 2013

Meu sapato fez-me um calo.

 
De tanto rodear avenidas,
meu sapato fez-me um calo.
Falei com todos da rua,
pessoas batendo às portas
procurando por garrafas vazias.
Eu, sentada, assistia a tudo, atenta.

Rodei, dei a volta a esquina,
ali, parado, um senhor contava as moedas
recebidas do troco pela bebida:
"tá tudo caro, minha fia",
respondi com um sorriso,
"nem a bebida se salvou".

A cada passo, o salto me bloqueava,
entrando nas arestas
do calçamento fresco.
Adiantei, bati à porta:
"oh, de casa",
ninguém me ouvia.

Era ele minha agonia.
Eu sabia que ali morava,
mas a casa, desconfiava.
A chuva começa
sorrio, descrente:
"era só o que faltava".

No meio da rua ouvi um grito.
Sentada na área de casa,
uma menina mergulhava sua boneca
numa encharcada bacia.
"toma banho, filhinha".

Com os cabelos assanhados,
bati três portas,
não se ouve,
não se vê,
não se sabe,
de ti, ninguém sabia.

Finalmente ao fim da rua,
atirei os sapatos,
com os calos inflamados.
Avistei sua sombra
frente a uma porta.
Inteira, eu estava,

a você eu me entregava.

Por: Ana Paula Morais