"E não maltrate muito a arruda, se lhe nçao cheira a rosas..."

terça-feira, 29 de julho de 2014

Ade...

Arqueei minha sobrancelha quando o vi chegar tão sério e pálido. Sabia das emoções passadas e do quão vago ele estava. Disfarcei e continuei lendo um livro de Kundera. Ele estava com uma bolsa nas costas, um sapato velho e um cheiro de passado. Seus olhos estavam fitados nos azulejos da sala. A professora desconhecia seus pupilos, continuava a reforçar as noventa e duas páginas para serem lidas em casa. Escrevi um bilhete que dizia "Passou?", mas ele não respondeu. Ao contrário do esperado, ele retirou sua alma do ar. Elevou seu corpo à música que parecia ouvir com os olhos fechados. Lembrei de uma história antiga, que minha vó já contara sobre o amor dos contos de fada. Imortalizei aquela lembrança enquanto não tirava os olhos de Paulo. Ele, lentamente, posicionou sua retina em mim. Gritava sua vergonha para mim. Mas eu não o compreendia. Eu não consegui empatizar sua lesão. Paulo é diferente de todas as pessoas que conheci. É de uma sensibilidade mórbida que me aflige. Decidi ir ao banheiro, lavar o rosto dessa resposta áspera que ele me privou. No caminho, voltei para pegar minha agenda, Paulo não estava mais. Olhei pela janela, mas não o vi. Minha agenda estava embaixo da carteira e me refletia solidão. Eu a ganhei num sorteio em uma palestra sobre bipolaridade no centro da cidade. Ela era cor de terra, com páginas simples e um cordão azul. Dentro, vi as letras de Paulo. Corri para as árvores do pátio onde sob elas, li:

"Clara, certamente não mais existirei ao ler essa carta. Terei partido cedo com meus pés cansados e minha poesia fadada. É muita coisa que queria lhe dizer, mas como havia prometido esta carta, deixarei aqui somente minhas companhias. Perdão pela descrença, Clara. Passei anos atraindo um caráter que não era meu por pessoas que não eram minhas, por verdades que eram mentiras. Eu te amei. Amei como algo sublime, como o  encanto das nuvens a derramar chuva, como uma criança correndo no parque ao final da tarde. Desejei todos os dias aquele sorriso ainda de olhos fechados pela manhã, aquele seu odor que me acompanhou durante meses por onde estive. Nunca te agradeci pelo amor que me destes, pela confiança que me amarrasse às mãos. Matei você a facadas longas, a sangue fino, a cada ausência declarada e, refiz-me. Forte como achava ser, honesto como uma mãe a um filho, ferido como um passarinho a voar. Eu te amo, Clara. Por favor, enterre-me. Teu Paulo."

Paulo estava morto na calçada da escola. Com a mesma insatisfação de anos atrás. Havia carros por todos os lados, pessoas gritando, algumas chorando. Levei Paulo para casa, abraçado na sua blusa amarela. Reli sua carta e beijei seus pés. Havia um copo em cima da pia. Misturei com água a despedida. Ao lado de Paulo, estavam minhas pernas, entre seus dedos os meus. Ali, partimos, sozinhos.

...us.

Por Ana Paula Morais.





quinta-feira, 17 de julho de 2014

Destroços

Daquilo angustiado, prende o peito
na cama farta que me arfou a morte,
agora alegra os passos da partida.

Dos meses em cacos, perfurando olhos
nos riscos da retina ouve-se a voz
"Alivia mais a cada privação sentida".

No chão, escoro as costas, cansada,
do verme manto do desprezo
da alegoria infame dos beijos.

Hei de ouvir o eco do nó desatado
"Aproveita a chuva e liberta-se, amada!"
- Teu sangue bebi, amaldiçoada.

Lambi os dedos engatilhados,
com verdades mesquinhas expostas no pó,
varridas ao vento, esfacelaram-se.

Correndo sob a nuvem, na chuva, 
vesti tua lama e andei nas ruas,
cuspi o inferno, brandei a lua.

[ Em vidas passadas, li uma vez
eu era curandeira em outro país.
Pobre, simples, curava as dores,
do mundo, da carne, dos homens famintos.
- Mas, ó que desatino o meu,
guardei minha cólera para esta vida terrena,
que agora me mata, sem cura à vista! ]

Lavei os pés ao chegar em casa,
molhada da chuva em meados de julho,
agora me prende essa chuva fina,
me nega o sol para respirar a vida.

Dois versos são reais, e mais reais foram sua vida.
Que a mim cegou tão longínquo tempo,
agora desnuda teus olhos mendigos,
de afeto e beijos regados à vela.

Partiu, serena, tão jovem donzela,
que donzela não mais era,
por rasgar-se tanto,
de pranto, de medo,
de desengano.

Por Ana Paula Morais.






sexta-feira, 11 de julho de 2014

Descrente


Foi-se a democracia sentimental. Vazou, findou, estrangulou-me. Ernesto tem compartilhado dizeres ofensivos, maltratados sobre minha postura pragmática e alusiva sobre os versos ouvidos na calçada. É mister que meu absurdo se decompõe na [des]história de mim. Assim como é arrogante pensar o quão vazia permaneço quando a aresta se preenche, momentaneamente, com sua passagem.

- Volte aqui! Repete Ernesto.
E por mais que eu me esforce para olhar de canto, desdenhando seu desejo. Eu sorrio, vagabunda, ao seu olhar insistente.


Parti, não por merecimento, mas como medida desesperada antes que o berro ultrapassasse a esquina. Logo vi, ao dobrá-la, o quão estava morta, sem odor, sem verso, sem dentes. A minha carne repara na sua insistência mal vista, encara-te por intermédio de palavras desencontradas. Surpreende-te, sutilmente, ao reler seus versos tortos, mortificados.


Não creia, Ernesto. Porque mesmo que amá-lo de fato me salvaste, não era meu coração sua ambição. Seria minha escravidão, meu ímpeto, meu sangue. E ainda assim, você me diria, sorridente:


- Não é o bastante.

Por Ana Paula Morais.

 Imagem do filme "Os miseráveis" (2012)

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Eu preciso arrotar

Cansei do copo furado,
de boca pra baixo.
Cansei da voz na bicicleta vendendo tapioca.
Cansei da reclamação, da conta zerada, da cerveja quente, da calça folgada.
Cansei de parir histórias, de reclamar dos jogos, do banho quente,
da virilidade.
Cansei de pedir atentamente, com voz mansa, o atendimento desbocado, das flores, das igrejas, das irmãs.
Cansei do tédio, do frio, da tv a cabo, da panela engordurada, da ligação com o super crédito.
Cansei dos olhares olhando, refletindo a palavra repetida nessa frase.
Cansei da humanidade, do corpo, do sexo, do gozo.
Cansei da minha assexualidade, do retorno ao bar da esquina, da cachaça vomitada.
Cansei dos filmes, do relógio, dos óculos de sol e da maquiagem borrada.
Cansei dos livros, das letras, dos dedilhados, do violão e da voz do cantor.
Cansei das vogais, do céu, da chuva, da lua nova, da paz iludida, das fotos mentirosas sobre o dinheiro que não se tem.
Cansei de ler erotismo, de publicar peitos e bocas, de desejar mulheres, de menosprezar os homens.
Cansei dos namoros na esquina, dos jovens arrotando seus lanches e jurando amores tranquilos.
Cansei da minha falsidade e da minha honestidade serem tomadas de mim, como órgão sexual, estuprado.

Cansei da sua mão em mim, da sua lambida e do seu cheiro.
Cansei da cidade, das ruas com quadrados verde e amarelo, do cheiro das tintas, das capas dos celulares.
Cansei do som das manhãs, do ninho dos pássaros, das cobras e das amigas.
Cansei do preço das lojas, dos sapatos caros, da carteira vazia.
Cansei dos hospitais, dos médicos, da delicadeza do açougueiro.
Cansei dessa escrita,
desse texto
e da minha cara bonita.
Cansei de dar voz ao mundo, dessa inspiração patética em dias infelizes.
Cansei de você nesse momento, por ter lido
e cuspido esse texto
mal escrito.

Ana Paula Morais